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#11 [texto] A morte: um lembrete diário

O que torna a vida digna de ser vivida? 

“Para morrer, basta estar vivo”. “A morte é a única certeza que temos”. Provavelmente você já ouviu essas frases por aí. Ainda que tenhamos uma certa consciência de que a morte é nossa única certeza, como é possível que, em geral, sejamos pegos de surpresa por ela?

Por que a morte — nossa e dos outros — nos causa tanto desconforto, ansiedade e às vezes até mesmo desespero? Ao que parece, nossa compreensão da inexorabilidade da morte não foi verdadeiramente integrada no nosso comportamento. Não a levamos ao nosso coração ao ponto de que nossa postura diante dela se transforme. Ao tentarmos colocá-la debaixo do tapete, evitando olhá-la de frente, ela se apresenta como uma verdade inconveniente ou como uma surpresa desagradável.

Como seria se, em vez de tentar evitar o pensamento da morte, invertêssemos essa tendência e passássemos a deliberadamente nos aproximar desse pensamento e estar cada vez mais conscientes da nossa finitude? Ao evitar pensar naquilo que certamente vai acontecer, além de sermos ingênuas, procurando contornar o inevitável, estaremos também perdendo a oportunidade de usufruir da transformação virtuosa e profunda que a consciência aguçada da morte pode operar em nossas vidas.  

A morte é o grande denominador comum: ninguém escapará dela. É diante da morte que damos as mãos aos ricos, aos pobres, aos educados, aos analfabetos, aos famosos e aos desconhecidos. Diante dela somos todos iguaizinhos: desnudos, inseguros, frágeis. Se a nossa conta bancária esteve bem suprida, se tivemos admiradores, se terminamos o doutorado, diante da morte isso tudo não tem a menor importância. Se tínhamos razão nas discussões com nosso companheiro ou companheira, se o chefe gostou do nosso projeto, se a nossa candidata ganhou as eleições, tudo isso, que às vezes pode parecer de grande importância, encolhe e perde totalmente o poder diante da lembrança da morte. O propósito de lembrar da nossa finitude está ligado ao fato de que ela retira a força e importância exagerada que muitas vezes depositamos nas questões do cotidiano, colocando a própria vida em perspectiva.

Cena do filme alemão "Hanami — Cerejeiras em Flor"

Cena do filme alemão "Hanami — Cerejeiras em Flor"

Contemplar a morte é como olhar a nossa vida desde o alto de uma grande montanha: de lá, tudo parece muito pequeno. Depois de contemplar nossa vida desse lugar amplo, podemos descer da montanha e seguir fazendo as mesmas coisas, nos mesmos lugares, porém, estaremos munidos de um pano de fundo amplo — a consciência vívida da morte — que vai nos proteger de levar as coisas a sério demais, ao ponto de nos desgastar e prejudicar a nós mesmos e aos outros. Seremos como um pai ou uma mãe que, ao ver os filhos brigando por um brinquedo, amorosamente darão um jeito de ajudá-los a perceber que a briga é desnecessária — afinal, o brinquedo não é tão importante quanto parece naquele momento.

Se nos colocamos nesse lugar interno consciente da morte, nos sentiremos desarmados: a intensidade do nosso envolvimento apressado e perturbado com o mundo vai se amainando, vamos gerando uma sensação de que precisamos aproveitar o pouco tempo que temos para nos mover de forma mais ampla e benéfica e não gerar mais confusão — porque dela o mundo já está cheio. Vai ficar cada vez mais difícil brigar, guardar mágoas ou ser ofensivo, pois percebemos que o nosso tempo é curto demais: resta-nos apenas apreciar a breve interação que temos uns com os outros e torná-la mais benigna possível. Vamos nos tornando naturalmente mais cuidadosos com nossas ações, com nossa fala e com nosso corpo, já que geramos mais consciência de que eles têm o poder de beneficiar ou prejudicar vidas que são curtas, cujo fim pode se dar a qualquer momento.

A consciência da morte vai nos tornando inofensivos, desarmados. Como ousar ser agressivo se o outro, como eu, tem uma vida curta e quer ser feliz?

Lembro-me da comovente história da trégua estabelecida na primeira guerra mundial, no natal de 1914, em que os soldados ouviram seus adversários nas trincheiras próximas cantar músicas natalinas e, transcendendo a ideia de inimigo, começaram a cantar junto. Como que por um milagre, eles começaram a sair de suas trincheiras e a se reunir no centro, olharam no olho daqueles que consideravam adversários de morte e viram neles pessoas iguais a eles: frágeis, saudosas de seus queridos, querendo viver. Conversaram e mostraram uns aos outros fotos de seus familiares e, na sua humanidade em comum, foram se tornando amigos. Nos dias que se seguiram a esse episódio, não conseguiram mais ficar no front e tiveram de ser afastados da linha de frente: não era mais possível causar mal àqueles que viram ser iguais. A guerra já não fazia o menor sentido.

Se contemplarmos a morte e percebermos que todos, sem exceção, estão sujeitos a ela e querem ser felizes no tempo curto que lhes resta, vamos perceber que nossas pequenas guerras do cotidiano também não fazem sentido algum. Não vamos mais aspirar vitórias, vamos naturalmente aspirar estabelecer a paz e condições para que os outros floresçam no tempo curto e indeterminado que lhes resta.

A consciência da curta duração de nossas vidas nos aproxima das pessoas, nos torna profundamente íntimos delas. Como se todos pudessem se tornar nossos amigos, parceiros dessa breve existência. Num mundo em que cada vez mais pessoas têm se sentido sozinhas e isoladas, a implacabilidade da morte e a fragilidade que compartilhamos diante dela pode ser um elo com cada ser, uma oportunidade de se conectar.

Mas, às vezes, pode surgir o questionamento: será que não vamos perder o brilho e entusiasmo pela vida e nos entristecer se cultivarmos a consciência sobre a morte?

Pelo contrário. Nossa tendência é valorizar mais a vida, o tempo, as interações, as oportunidades, afinal, cada encontro pode nunca mais se repetir. Naturalmente vamos revendo as prioridades. Vamos nos dando conta que muitos dos objetivos que perseguimos talvez não estejam nos fazendo necessariamente mais felizes. E o tempo está passando. Percebemos que dinheiro, sucesso, viagens, posses e reconhecimento nos trazem apenas felicidades temporárias, logo em seguida já estamos insatisfeitos novamente, em busca de uma nova alegria de curta duração. Quando contemplamos a morte começamos a intuir que viver a vida apenas correndo atrás de felicidades breves, procurando a todo o custo satisfazer nossos desejos hedonistas, é viver como uma criança num corpo de adulto, sempre buscando por um novo chocalho para se entreter.

Isso não significa que não devemos mais usufruir dos prazeres e alegrias temporárias da vida. Maravilhoso que possamos fazê-lo. Mas se nossa vida se resumir a isso, estaremos perdendo muito do nosso potencial humano. É uma grande riqueza descobrir a possibilidade do contentamento com o que já se tem e se dar conta da oportunidade sempre presente de beneficiar os outros. É uma inversão profunda de valores.

A própria ciência já identificou que estamos sujeitos a um processo que ela chama de “adaptação hedônica”. Trata-se da tendência de nos adaptarmos ao nível de bem estar que alcançamos, de modo que nossa insatisfação sempre retorna. Precisamos estar atentas a isso, caso contrário, estaremos sempre aborrecidas, mesmo tendo aparentemente tudo que almejamos. Nesse contexto, a contemplação da impermanência e da morte pode funcionar como um ótimo antídoto para não sermos vítimas da adaptação hedônica. Além disso, quando morrermos vamos ter de deixar tudo o que conquistamos para trás, então é bom começarmos a treinar a mente para não dar tanta importância para isso desde já.

Vamos percebendo que direcionar o nosso tempo para gerar benefícios para os outros nos ambientes por onde andamos é uma postura que trará satisfação mais perene e, especialmente, diminuirá a chance de termos arrependimentos na hora da nossa morte. Essa é uma boa preparação para morrermos sem inimigos, sem peso na consciência por relações mal resolvidas.

As mortes dessa vida

A gente costuma se relacionar com a morte apenas como uma experiência única que vamos viver lá na frente, no final da nossa vida. Mas podemos aguçar o nosso olhar e começar a notar que, a cada momento, estamos nascendo e morrendo para as mais variadas circunstâncias e mundos. Já nascemos e morremos para muitos ambientes, para muitas identidades.  Não há uma única experiência que consigamos estabilizar, todas elas estão em constante mudança. Ao contemplar que tudo está em permanente transformação, em constante processo, talvez tenhamos a lucidez de encarar a morte do nosso corpo e das pessoas ao nosso redor como mais uma grande transformação. E não como uma ocorrência súbita, que nos pega totalmente de surpresa.

A contemplação da impermanência e da morte é crucial, mas talvez ainda mais importante seja observar o que segue presente enquanto tudo desaba: o que há por trás das várias mortes que já vivenciamos?

Podemos pensar numa situação bem difícil que vivemos, que eventualmente nos provocou uma sensação de morte, de que seria difícil seguir com a vida depois. Ou, então, nas pessoas que passam por grandes tragédias, perdem tudo, inclusive os entes mais queridos. De algum jeito, em algum momento a pessoa se levanta, reúne forças e começa a ter ideias sobre como refazer a sua vida. Ou seja, alguma coisa nela segue viva. Nós podemos não acreditar que a nossa vida segue depois que nosso corpo físico morre, mas podemos observar que nós temos sobrevivido às mortes das personagens que exercemos nesta vida. Há uma dimensão em nós que segue viva, mesmo quando tudo parece desabar, e é dela que as novas personagens e construções começam a surgir.

Foto de Beatriz Xavier, fotógrafa convidada para ilustrar a trilha de Finitude

Foto de Beatriz Xavier, fotógrafa convidada para ilustrar a trilha de Finitude

Parece haver uma dimensão em nós capaz de recriar caminhos, uma sanidade básica sempre disponível que acaba perdurando mesmo que tudo esteja oscilando o tempo todo. As tradições contemplativas se dedicam a aprofundar o reconhecimento e a estabilização dessa sanidade básica. A tradição a qual eu me dedico, o budismo, se especializa especialmente em práticas meditativas que ajudem a pessoa a descobrir e fazer florescer ao máximo esse potencial. No contexto budista, a contemplação da morte nos leva a intuir e a querer descobrir aquilo que não morre mesmo quando tudo parece morrer.  

Muitos seres de sabedoria já pisaram nesse mundo e descobriram essa dimensão em nós. Isso me parece muito espantoso e digno de dedicarmos algum tempo investigando. Eles dizem que, apesar do nosso corpo físico morrer, há uma consciência que segue, como se estivéssemos aqui para sempre. Se trabalharmos com a hipótese de que eles talvez estejam certos, seria extraordinário se aproximar dessa dimensão que não termina e poder passar vivos pela morte física, com alguma lucidez do que está acontecendo. Além disso, se considerarmos a hipótese de que nossa vida não termina com a morte e de que é possível influenciar as vidas futuras através das nossas ações, a contemplação da morte se torna ainda mais decisiva.

* * * 

Trago aqui algumas contemplações que podemos fazer no cotidiano para nos tornarmos cada vez mais conscientes e íntimas da impermanência e da morte.

Contemplar que já morremos muitas vezes

Faça uma lista das várias identidades que você já teve. Por exemplo: funcionária de tal lugar, empresária, namorada de ciclanx (liste todxs xs ex), moradora de tal cidade, praticante de tal hobby/tal esporte, estudante de tal coisa etc. Deixe sua mente realmente passear pelo seu passado. Perceba que muitos dos mundos que você habitou já cessaram completamente. Talvez não exista mais nenhum vestígios deles. Contemple isso. Agora olhe os mundos por onde você transita hoje. Perceba que um dia eles também cessarão e que as identidades que você exerce hoje também morrerão. Descanse um pouco nessa contemplação.

Nós não estamos no comando

Observe todos os dias como nós não temos controle sobre a nossa vida, embora tenhamos a sensação que temos. Ela depende de uma rede infinita de causas e condições, que diante de uma pequena oscilação, colocam em risco o frágil castelo de cartas que é a nossa vida: se estamos no ônibus, contamos com a estabilidade e prudência do motorista para viver, bem como das pessoas que fazem a manutenção do automóvel e das estradas. Contamos também com a prudência e estabilidade dos motoristas que cruzarem pelo ônibus. Se estamos num avião, nossa vida depende do piloto ter dormido bem e estar com boa saúde mental e também dos controladores de voo nos aeroportos estarem atentos. Nossa existência depende da vida de muitos. A contemplação desse ponto nos ajuda a percebermos que a qualquer momento o trem da nossa vida pode descarrilhar, a qualquer momento alguma coisa pode acontecer conosco ou com os outros. Isso também auxilia a nos aproximarmos dos demais a partir desse olhar de humanidade compartilhada: nós não estamos no controle, mas ninguém está — e quanto mais cuidamos da vida uns dos outros, menos frágeis estaremos diante das mudanças e mortes inevitáveis.

Mensageiros preciosos

Para tornar a contemplação da impermanência um hábito, é importante termos alguns gatilhos no cotidiano que nos ajudem a voltar a mente para a realidade da transitoriedade. Uma sugestão que ouvi de um mestre e vejo que pra mim funciona bem é sempre que encontrar ou cruzar com uma pessoa idosa lembrar: um dia eu estarei assim também, com o corpo frágil, cabelos brancos, saúde debilitada. Talvez hoje ainda sejamos jovens, podemos ter 20, 30, 40 ou 50 anos e a perspectiva de ter 80 ou 90 anos pode parecer longe demais. Mas observe como, às vezes, temos a sensação de que os últimos cinco ou dez anos passaram rápido. Talvez os 80 ou 90 anos também cheguem mais rápido do que possamos imaginar — se é que teremos a sorte de viver até lá.

Outro gatilho interessante é o surgimento de cabelos brancos. A cada vez que percebermos um novo fio, podemos lembrar: está aí, um mensageiro precioso da finitude do meu corpo. Meu corpo já está, literalmente, perdendo cor.

Se você ainda não tem a oportunidade de dar as boas vindas para os mensageiros brancos na sua cabeça, olhe ao redor e perceba que isso já está acontecendo com todo mundo.

Talvez seja o último

Uma outra forma de treinar a consciência sobre a morte no cotidiano é gerar o hábito de trazer à mente a noção de que podemos estar fazendo o que estamos fazendo pela última vez. “Pode ser a última vez que visito meus pais”, “esse pode ser o último livro que leio”, “esse pode ser o último jantar com meu companheiro/minha companheira”, “essa pode ter sido a última conversa com minha mãe”, “esse pode ser o último capuccino que tomei, o último filme que eu vi”. E, para não perder a oportunidade, lembre-se que esse pode ter sido o último texto que lemos na Comum. (Esperamos que não!) :)


Stela Santin é aluna do Lama Padma Samten e praticante do CEBB.


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